quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Eu quero, além dos sapatos, uma vida que me caiba

Rosane de Souza*

Aprendi desde cedo, embora descalça e meio solta no mundo, que o fim dos casamentos era provocado, invariavelmente, pela mulher, que cismava em não saber agradar ao marido -- fazer comida e, ainda assim, se manter desejável, se possível, com ajuda de uma maquiagem e belos saltos altos. Até hoje tenho um misto de pena e inveja das que conseguem se equilibrar os saltos que a tornam feminina e alvo da cobiça dos homens. Mudou o mundo, mas até hoje as revistas ensinam como conquistar e segurar seu homem -- agora, com ajuda de plásticas e brinquedinhos sexuais.

Minha mãe desistiu de mim, a certa altura, quando reparou que os conselhos não funcionavam. Mas minha irmã, coitada, foi obrigada a fazer um torturante curso de culinária, na Casa da Itália, em Salvador, que até hoje não lhe serve de nada, porque, no meio do caminho, o curso da história mudou, e ela teve mesmo foi que voltar para escola e aprender o ofício de trabalhar até que o mercado, assim como os antigos maridos, a considerem imprestável.

Desemprego nos homens é um problema familiar e social muito grave. Que mulher ainda não ouviu ou leu, mesmo hoje, que deve ser paciente e saber administrar a vida do seu homem, quando ele perde o emprego? Mas, quando isso ocorre com a mulher, na maioria das vezes, todo o problema se resume a uma certa inapetência ou falta de disposição de ser manter para cima -- em alguns casos, pode ser até mesmo por influência dos astros. Nada que o pagamento de uns R$ 15 por um mapa astral não resolva. Quem ainda não ouviu também o conselho que é preciso fugir das tristes e das que estão para baixo -- e a tal ponto que a própria infeliz se tortura na busca de fórmulas para fugir de si mesmas?

Por isso, quero, além de sapatos, uma vida que me caiba, porque, além da eterna juventude e perspicácia para arrumar e manter um homem, andam nos exigindo a profissão de heroínas: sabedoria para enfrentar a adversidade, compreensão para com os filhos -- os despóticos maridos de hoje --, saber cozinhar, lavar e passar e, ao fim, encontrar, invisível, um cantinho para morrer, sem incomodar ninguém, porque muitas de nós, apanhadas por armadilhas inesperadas, ficaram, assim como os loucos sem asilos, sem os “provedores” (os maridos) e sem saber como se manter jovem para o mercado de trabalho ou encontrar o caminho do INSS.

Sem os sapatos e sem uma vida que as caibam, um grupo de mulheres indianas que se autodenomina gulabi gang, ou a gangue rosa, anda fazendo justiça com as próprias mãos na empobrecida região da cidade de Banda, no norte da Índia. “A gangue já deu surras em homens que abandonaram ou bateram em suas mulheres e denunciou práticas corruptas na distribuição de comida para os pobres. Elas vestem sáris cor-de-rosa (o sári é a roupa tradicional feminina na Índia), saem em perseguição de autoridades corruptas e, quando necessário, se armam com varas e machados”.

As centenas de adeptas da gangue fogem de associações com partidos políticos e organizações não-governamentais porque, nas palavras de sua líder, Sampat Pal Devi, "eles estão sempre esperando alguma coisa em troca quando oferecem ajuda financeira. Ninguém nos ajuda nessas redondezas. As autoridades e a polícia são corruptas e são contra os pobres. Então, às vezes temos de fazer justiça com as nossas mãos. Em outras situações, preferimos envergonhar os malfeitores", explica Sampat Pal Devi, enquanto ensina uma das mulheres da gangue a usar um lathi (vara tradicional indiana) em defesa própria”.

Ah, mas isso aí é política. E política ainda é coisa dos homens, mesmo quando é feita por mulheres quase homens de tão distante da vida que nós, mulheres, levamos.

*Rosane de Souza é (pela ordem) baiana, guerreira e jornalista.
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