terça-feira, 12 de maio de 2009

Rua Santa Fé 725

Rosane de Souza*

Há anos que nos dizem que estamos condenados a viver essa vida -- desgraçadamente meus filhos acreditaram e eu mesma já não estou segura de que há outra. Parte de minha geração com certeza anda vivendo os dias como se fosse um exercício de esquecer até a bela observação de um anônimo combatente republicano espanhol: "Nós perdemos todas as batalhas, mas éramos nós que tínhamos as melhores canções".

Muitos estão em dúvida se são melhores as nossas canções. Sentem até certo desconforto em escutá-las.

Cansei e até introjetei, acho, a idéia de que tudo em que acreditei é, no mínimo, risível. O que a esquerda (falo da esquerda e nela, por favor, excluam o PT, em nome das melhores canções) vem pensando e escrevendo colabora para isso, acredito, porque não há, em geral, um pensamento mais profundo -- talvez a palavra mais apropriada seja mais honestamente humanista e meditativo sobre a tragédia do exílio que se incrustou em parte de minha geração. Há exceções e andam escrevendo no “Le Monde Diplomatique Brasil” -- o número de maio é importante para todo aquele que foi condenado ao estranho exílio de perder o sonho humanista de construção de outra vida.

Toda essa desesperança está exposta no filme com o simples nome de Rua Santa Fé. Peguei numa locadora de Vila Isabel e, como vocês sabem (porque já cansei meus amigos de tanto falar), nelas o gosto do freguês tende ao best seller, a oscares, ao terror e a violência. Desconfio que o Ricardo, o dono, comprou errado, porque, ao perguntar quando ia chegar "A Culpa é do Fidel", a funcionária me disse: "Ih, não sei, não. Não sei nem se ele vai comprar", com uma forma de falar assim de gente que não sabe quem é Fidel, muito menos do que o filme se trata, mas de quem tem a mais absoluta certeza de que só eu me interessaria em assistir.

Pois é, se não vai comprar Fidel, Ricardo deveria muito menos ter comprado Rua Santa Fé. Daqui a um mês vai se revelar arrependido, porque eu mesma não vou pegar outra vez, pelo simples fato de que o copiei. Rua Santa Fé de quem a contracapa diz apenas: Santiago, Chile 2007. Por meio de rostos e vozes de sua família, vizinhos e companheiros no exército, Carmen Castillo a viúva de Miguel Enriquez, secretário geral do Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR) segue um destino que a guia do MIR ao exílio. Dos dias de glória de Allende aos longos e sombrios anos de ditadura de Augusto Pinochet. Acompanhada por aqueles que resistiram e ainda resistem. Entre o caos do passado e as irremediáveis emoções do presente, emerge a história de uma geração revolucionária e de um país quebrado.

Apenas é só um modo de expressar a sensação de desnorteamento com o filme de Carmen, que o narra com voz cansada, voz de uma velha que ainda não é, aliás, ela ainda é muito bela -- e sem nenhum retoque ou filtro -- tom também de alguém que tomou uma injeção de morfina e apenas assiste as pessoas contarem parte da vida que ela viveu.

De quem, para seguir fazendo-o, tem que lembrar apenas do "belo rosto de Miguel no dia em que morreu". Mas, ao caminhar e nas perguntas que faz, com todo o cuidado para não cair no doutrinarismo e na nostalgia , revela seu assombro, sua imensa dor do exílio que não se resume à França -- até porque foi bem-sucedida em esquecer o Chile. Não lembrava nem das Cordilheiras. Para alguns, como Carmen Castillo, o exílio foi imposto para sempre: jamais vai reaver muito mais do que Miguel Enriquez. Estão perdidos os sentimentos, as sensações, o compartilhamento dos dias de Allende. Até a lembrança do que ela qualifica de "sortilégio" (aqueles dias) foi proibida.

É com essa frágil certeza que ela passeia por Santiago, revela seu desconcerto com esse Chile pós-ditadura, neoliberal, Bachelet. "Essa mulher que regressa ao País como se chama?", se pergunta quando 13 anos depois volta ao Chile, por permissão de Pinochet para ver o pai, que estava doente". "Santiago... nada se encontra em seu lugar. Só há um vazio povoado de ausentes. As sombras me envolvem e o medo também, em pleno dia. Só vejo militares, os traidores e a resignação da gente que passa". Ou também: "Voltei ao Chile várias vezes depois da volta de democracia. Nunca nada enfraqueceu meu desejo de viver na França. A arrogância dos vencedores, a impunidade dos criminosos, a amnésia geral me sufoca... Conseguiram os militares apagar tudo?"

Rua Santa Fé 725 é o endereço em que viveu com Miguel até a ditadura de Pinochet os descobrir. É a partir desse endereço que ela constrói mais do que um mergulho na memória dos derrotados, dos ex-militantes do MIR, que se autodissolveu às vésperas do fim da ditadura.

É uma dolorosa, mas ainda assim ( e ainda hoje), uma "melhor canção". Tem imagens nunca vistas dos dias do golpe, pelo menos nunca vistas por nós -- as esconderam até o tempo em que ninguém mais as queria ver. Parece uma grande tragédia, um grande incêndio, com todo mundo correndo e alguém que diz, num depoimento, das lembranças, quase sensações, do barulho das latas de lixo. São imagens bem próximas, que nos dá idéia da resistência desordenada, desorganizada e nos leva a sentir a mesma a surpresa, o desconcerto e a descrença das primeiras horas do golpe de que algo como Pinochet fosse possível. Nesses momentos, Pinochet parecia uma nauseante (e pouco duradoura) rasteira da história. É contado também como se fosse um segredo para alguns, principalmente, quando uma orquestra de crianças toca o hino do MIR ou quando não ganha prêmio algum ou quando conta a história do governo de Allende, mas a partir de uma organização, o MIR, que adotou um "apoio crítico" ao governo de Salvador.

Todos os dias nos comprovam que não há mais espaço para as revoluções. Todos os dias nos dizem que éramos uma ficção. Talvez, sim. Há um depoimento que fala sobre Bautista, um militante, médico que dizia que, dentre todas as renúncias que teve que fazer, a maior era de não exercido a sua profissão. Quem fala lembra que ele gostava de rock e de dançar. "Dançava como nenhum outro mirista. Mas em toda a sua vida não deve ter dançado nem dez vezes".

No Brasil, talvez, uma parte da esquerda até fosse uma ficção, porque foi impedida de viver os dias de construção de um sonho e mais imaginou do que viveu -- como até hoje -- no meio do povo. Não sabe suas dores, não compartilha seus sonhos e acha que é uma imensa legião de famintos, analfabetos, burros, pobrezitos e merecedores de esmola. Simplesmente o desconhece. No Chile de Allende, eles mais do que compartilharam, construíram juntos por um período dolorosamente curto um diabo de um outro país que, de vez em quando, volta a me assombrar.

E se Carmen resiste e não volta nunca mais a viver lá, eu resisto até a visitá-lo, com medo dos ausentes que povoaram meu sonhos. O filme é longo. Eu cometi um erro terrível ao começar a assisti-lo depois da meia noite de sábado. Ele não acabava nunca, nem a minha imensa tristeza de não ter vivido aquele sortilégio, mas conhecê-lo o suficiente para lamentar a sua perda. "Um dos problemas de existir é que eles não existem mais", diz um personagem que até hoje estranha a capacidade de continuar vivendo sem aquelas pessoas excepcionais.


*Rosane é jornalista e volta e meia brinda os amigos com textos comoventes como Meu coração vagabundo e grená (julho de 2008) e Eu quero, além dos sapatos, uma vida que me caiba (dezembro de 2007).


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