sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Karman

Os mais novos, que não conhecem o mundo sem celular ou internet, também não conseguiriam imaginar a dificuldade que era sacar, depositar ou transferir dinheiro há pouco mais de 30 anos. Para sacar qualquer quantia, era necessário preencher um cheque, ir até a agência (não podia ser qualquer uma, tinha que ser a agência do emitente), enfrentar uma fila imensa* até chegar à boca do caixa; lá, esperar que o caixa conferisse a assinatura do cheque em um livro e, depois, o saldo da conta na ficha (de papel) do cliente. Detalhe importante: isso só podia ser feito nos dias úteis, no horário bancário. Sem falar que não existia doc e a simples compensação de um cheque de outra praça levava vários dias. Hoje, tudo isso é trivial para a maioria das pessoas e pode ser feito em poucos minutos, por internet, telefone ou terminais de auto-atendimento (ATM), em qualquer ponto do país. Pois muitas dessas facilidades se devem a um dos pioneiros da automação bancária no país: Carlos Eduardo Correa da Fonseca, o Karman.

Karman faleceu no último dia 28, vítima de um câncer de pâncreas. Sua morte não foi notícia, a não ser em veículos especializados como é o caso da newsletter Decision Report (http://www.decisionreport.com.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=10113&sid=1).

Karman dedicou toda sua vida profissional à automação bancária. Tinha um entusiasmo contagiante. À frente da Itautec, foi responsável por inovações tecnológicas como os ATMs, e pela implantação da primeira agência automatizada do país, em São Paulo, batalha arduamente disputada com o Bradesco. Transcrevo a seguir um dos episódios mais marcantes dessa briga, que tive o orgulho de descrever no livro “Guerrilha Tecnológica: a Verdadeira História da Política Nacional de Informática” (LTC/1988).

Ao contrário do Bradesco, que preferiu participar minoritariamente em três empresas industriais (Cobra, SID e Digilab), o Itaú decidiu, seguindo o exemplo do Citibank norte-americano, criar sua própria empresa para desenvolver e fabricar seus sistemas: a Itautec. Ela herdou a experiência de uma equipe de engenheiros do banco que, desde 1977, chefiada pelo analista de sistemas Carlos Eduardo Correa da Fonseca, o Karman, dedicava-se a projetar alguns equipamentos, como uma interface para ligar os computadores do Banco à rede nacional de telex. Projeto este, aliás, que um escritório inglês de consultoria concluiu ser inviável, apesar da comodidade que ofereceria aos clientes, permitindo-lhes acesso às suas posições de cobrança de títulos através do telex. Em seguida, o grupo de Karman projetou um terminal-caixa, terminais administrativos, o terminal de saldo e de extratos e microcomputadores. Some-se a isso o grande investimento feito escrevendo-se os programas dos sistemas de gerenciamento de redes, de banco de dados e outros necessários ao processamento on-line.
A competição entre o Itaú e o Bradesco foi ferrenha. Para descontar o avanço do Bradesco no desenvolvimento de sistemas on-line, o Itaú trabalhou duro, com o objetivo de ganhar a corrida para a instalação da primeira agência automatizada. O grupo de Karman projetou um sistema-piloto simplificado, com terminais ainda em fase de protótipo, implantado na agência Jumana, na zona do Mercado, em São Paulo. Um dia, Karman convidou Francisco Sanchez, do Bradesco, para conhecer a experiência. Este elogiou, achou bonito mas não se deu por vencido: "Agora você vai ver a nossa agência!" exclamou com orgulho. E o levou, de helicóptero até a Cidade de Deus, onde lhe apresentou um sistema completo e sofisticado, terminais com design definitivo, leitora de caracteres magnéticos e outros equipamentos. Karman sentiu um frio no estômago. Saiu da sede do Bradesco convencido de que seria difícil vencer a corrida, mas decidido a tentar alguma solução. Aquilo não podia ficar sem resposta!
Dias depois, Setúbal e outros diretores do Itaú também visitaram a agência central do Bradesco. Ao regressar, obrigaram o orgulhoso Karman a suportar uma avalanche de broncas e cobranças. O pior é que Setúbal, como Karman temia, se deixara impressionar com o pequeno vídeo do terminal-caixa do Bradesco (o do Itaú dispunha apenas de um simples visor alfanumérico), sendo difícil lhe explicar que, voluntariamente, a Itautec descartara aquela opção por achar que o operador de caixa, bastante treinado e sabendo todas as operações de cor, não precisaria de informações no vídeo, bastando-lhe conhecer os códigos e valores. Já os clientes, sim. Acicatado por Setúbal, Karman mandou projetar um terminal de cliente bastante atraente e com todas as facilidades. Foi uma correria para criar o novo produto, aperfeiçoar os existentes, melhorar o desempenho do sistema e tentar, mais uma vez, sair na frente do Bradesco. Até porque a agência da Cidade de Deus destinava-se mesmo a impressionar os visitantes, atendendo tão somente aos funcionários do banco, e não ao público. Os dois lados se empenharam na disputa. Sanchez apertava Cardoso, na SID. "Tem que andar!". Na Itautec, todos corriam feito loucos.
Setúbal decidiu que, para fazer bonito, o Itaú começaria a se automatizar pela sua maior agência, a Central. "E vamos fazer uma festa!", garantiu. Convidou autoridades, banqueiros, os titulares da SEI e conseguiu inaugurar o sistema, uma semana antes do concorrente. Karman fez questão de ciceronear Sanchez que, polidamente, fora prestigiar a festa. "Eu sei que você conhece tudo. Mas tem uma novidade", deliciava-se enquanto mostrava a Sanchez o original terminal de cliente, operado a toque dos dedos diretamente na tela.
*Parece que não há automação que acabe com as filas. Mas isso é outra conversa.

7 comentários:

Sérgio Gomes disse...

Belo depoimento. Abraços, Sergio Gomes

Cristina De Luca disse...

Estava de férias e vi no obtuário do Estadão, um anúncio pago pelo família. Muito triste. Era uma das minhas referências em tecnologia bancária.

Fernando Moutinho disse...

Muito triste...

Alice Rossini disse...

São pessoas como esta que, anonimamente", no caso do Karman, fazem a diferença no mundo. Usam de seu tempo e talentos para facilitar a vida de milhares de pessoas, inclusive, daquelas que não podem sair de casa por circunstâncias várias

Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Marilia A Campos Ballard disse...

História de vida que merece ser contada

Anônimo disse...

A briga entre o Bradesco e o Itaú, tendo o Karman à frente dos projetos, fez do Brasil um país com um serviço bancário bastante sofisticado. Aqui na França, não existe muitas das vantagens brasileiras e a gente sofre com esse atraso. É nessa hora que a gente compreende a genialidade e importância de pessoas como o Karman. Grande perda.

Cristina Lemos